* Por Karina Gols
Cristina deixou uma mensagem de voz. Estava ofegante. Uma frase que minha terapeuta disse, durante nossa sessão online, marcou-me profundamente. Falou que o tempo é uma invenção do homem.
De acordo com um artigo publicado no “Le Monde”, após o confinamento mandatório devido à quarentena, em apenas uma semana, a violência doméstica aumentou em 36% na área de Paris.
Estou dirigindo o meu carro, feliz com quem eu chamo de “meu presentinho de Deus” no banquinho traseiro . De supetão, algo me distrai.
Ilan está, pela primeira vez, dando um tapa que me faz rolar na cama. Com extrema dificuldade, termino o namoro de cinco anos.
Após essa cena, recordo o primeiro jantar com Henrique, que ignorou a conta ao fim da refeição, continuando a conversar. Envergonhada, paguei.
Nos dois meses em que namoramos, arquei com todas nossas despesas. Eu não sabia dizer não. Pudera, depois de tudo o que passei, queria que alguém gostasse de mim. Independente do preço.
Certo dia, no trajeto escolar, sentei sobre os joelhos, de frente para a janela. Ao me levantar, descobri um chiclete já mastigado. Tínhamos assentos marcados no ônibus e sempre sentava assim, encarando a janela. Em casa, minha mãe insistiu, retirando com álcool o chiclete grudado: “É claro, Karina, que alguém colocou de propósito no seu banco”. Mas eu não compreendia o por quê.
“Como foi na escola?”, pergunto, afivelando seu cinto de segurança, na volta para casa. De costume, respondeu com seu sotaque brando, “bom”. Mas busco detalhes. Se todos são bem tratados e como foram as brincadeiras. Brincadeiras. Esse é o gatilho. A brincadeirinha durante o aniversário do Sérgio era arremessar, uns contra os outros, os chicletes Ploc, distribuídos em várias bandejas. Chegou a vez da menina que me provocava convocar todos: “agora todo mundo jogando na Karina" Nunca me esqueci da dor. Aquelas porcarias, quando lançadas, doíam à beça. E, claro, a dor de ser segregada, sacaneada, por todos da minha classe. Nem da dor descomunal dos socos na boca do estômago que levei de Rodolfo, durante os trajetos do ônibus escolar.
Muito menos quando Ilan falou que ninguém em plena consciência se casaria comigo por causa das doenças hereditárias na minha família, como Parkinson e Alzheimer. Mônica atestou algo similar ao varrer meu pé. Pedi que “desvarresse” para encontrar um marido. Superstição tosca. Sem perder um segundo, sua língua afiada soltou, “mas quem vai querer se casar com você “? Pois bem, muitos anos depois, conheci um americano pela internet. Ele me elogiava, dizia o quão bonita e inteligente eu era, enfim, ele me colocava no pedestal. Era 17 anos mais velho que eu. E feio. Muito.
Passou quase um ano me conquistando. Telefonava inúmeras vezes por dia, enviava presentes pelo correio e veio ao Brasil para me conhecer. Em sua suíte do Sheraton, havia uma mesa cheia de mimos que trouxe para mim, incluindo forno de microondas, laptop, telefone sem fio, y otras cositas más. Isso tem nome: “Love bombing”. Recurso que sociopatas utilizam para encantar suas vítimas. E foi justo o que aconteceu. Jamais alguém me mostrou tanto afeto. Chegou até a mandar flores para o meu trabalho.
Logo noivamos. Foi aí que as coisas começaram a mudar de figura.
Veio morar em meu apartamento alugado e sentia que a casa era sua. Rapidamente se apropriou do meu home office. Ligava para o exterior usando meu telefone e eu recebia contas exorbitantes.
Aos poucos passou a ter acessos de raiva pelos motivos mais fúteis. Berrava e até me xingava. Momentos depois dos assédios voltava a me tratar como uma princesa. Um verdadeiro caso de “O Médico e o Monstro”. Pensava com meus botões que ninguém era perfeito. Que tinha um gênio forte. Ou seria eu quem o provocava sem saber? O casamento caminhava ladeira abaixo. De abuso verbal passou para a violência física. Tapa na cara mesmo. De novo? Mas dessa vez estava casada. Não sabia o caminho das pedras de um divórcio. Além disso, todos o adoravam. Após anos residindo no Brasil, mudamo-nos para Califórnia, onde a violência aumentou. No Rio de Janeiro, vivias às minhas custas pois ele não trabalhava. Quer dizer, inventava projetos megalomaníacos que nunca se concretizavam. Dizia ser produtor de música e cinema, mas foram breves passagens por essas indústrias. Mentia descaradamente. Ao confrontá-lo, ele sempre vinha com uma explicação mirabolante ou gritos.
Minha vontade que meu casamento desse certo era mais forte que minha autoestima, avariada desde o bullying durante a infância. E há quem diga que isso é normal em um ambiente escolar, que fortalece a pessoa Uma pinóia! Após 10 anos nessa montanha russa emocional, já estava com uma condição médica, precisando de medicamentos diários contra dor crônica. E então descobri que ele sonegava impostos, inclusive em meu nome, pois eu acreditava piamente que estava tudo em dia com o IRS, o imposto de renda americano. Foi a gota d'água.
Não titubeei. Consultei amigos. Contratei um advogado e paguei seus honorários em pequenas parcelas por anos.
Pedi o divórcio.
Meu ex me deixou com dívidas de deixar o queixo cair. E igualmente aproveitou-se financeiramente de parentes. A vergonha e culpa que eu senti por ter confiado naquele salafrário e o colocado na minha família era gigantesca. Dei um basta. Entrei em contato com credores, contadores e com o IRS. Comecei intuitivamente a gostar de quem gosta de mim e constantemente me trata bem.
Essas “viagens” ao passado, como se os acontecimentos tivessem ocorrido há poucos minutos, de acordo com duas psicólogas, são sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Daí a frase da minha atual terapeuta, “o tempo é uma invenção do homem”.
Os sentimentos do passado podem estar mais presentes do que nunca.
Mas meu relato não é um lamento.
Refiz minha vida, aqui mesmo nos Estados Unidos, sozinha. Hoje estou satisfeita com o que reconstruí. Casei. Sinto o amor da minha família e “in-laws” sem precisar colocar a mão no bolso. Realizei meu sonho de ser mãe aos 44 anos. Uma bênção. Fui recentemente convidada pela Cristina, com quem tenho contato superficial pelo Facebook, a fazer parte de um grupo de WhatsApp daquela escola. Disse que hesitava entre aquietar os meus traumas, ou o receio de ser novamente caçoada. Confidenciei que os acontecimentos na escola, infelizmente, me afetaram em demasia.
O que escutei dela, que hoje trabalha como professora escolar, foi comovente. Uns 11 minutos de áudio honesto, lúcido e esclarecedor, com sinceros pedidos de perdão, embora ela não pertencesse ao grupinho que implicava comigo. Tudo isso para explicar de onde vem a minha revolta ao ler notícias sobre o recente aumento da violência doméstica em vários países devido à quarentena. Que lembro do meu ex-marido.
Casais confinados em pequenos espaços por muito tempo evoca um casamento de gasolina com um fósforo aceso. Certamente há um grande nível de frustração e até mesmo raiva na atual conjuntura. Mas ao ponto de um cônjuge atacar o outro? Tem algo de muito errado aí.
Você, que começou a sofrer nas mãos de seu parceiro ou parceira, saiba que não há amor onde qualquer tipo de violência é permitida.
O abuso verbal como gritos e xingamentos, afirmações que lhe dão a sensação de estar enlouquecendo (gaslighting), ciúme incontrolável, reclamações sobre você, tudo isso faz parte de violência doméstica.
Quando essas torturas mentais se metamorfoseiam e passam para violência física, cuidado.
Possibilitando que as vítimas solicitem ajuda, a França anunciou que instalará nas farmácias um dispositivo para alertar a polícia.
Um artigo publicado no “The New York Times” cita que os abrigos americanos estão constantemente se adaptando às regulamentações referentes à pandemia atual, implementando práticas de distanciamento social e incessantemente desinfetando as áreas sociais. Em Nova Iorque, o epicentro do COVID-19, os abrigos são considerados serviços essenciais e devem funcionar normalmente. Não tenho ideia de como está a situação brasileira, mas, caso você esteja se sentindo insegura em casa, contate a delegacia de mulheres. Não contei da missa a metade, mas decidi dividir esse relato tão íntimo com vocês. Quero fazer algo em relação a isso, explicar as etapas de como, subitamente, eu me vi trancafiada em um relacionamento abusivo e quiçá elucidar os motivos que nos mantém atados a eles. Ainda durante a época de muita vergonha e medo de me queixar, um funcionário me atormentava no trabalho e uma colega reportou o caso ao diretor. Expliquei que não o incomodei com isso porque “estava mantendo esse assunto em fogo brando”. E o diretor, com sua vivência, seu pragmatismo e grande coração, respondeu sem pestanejar. “Isso, Karina, é para deixar em fogo apagado”. Ah, se eu somente soubesse naquele tempo escutar e entender as sábias palavras de uma homem bom...
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NOTA DA REDATORA: Todos os nomes das pessoas envolvidas nesse relato foram modificados.
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Fontes: Artigos
Le Monde
“Confinement : Les violences conjugales en hausse, un dispositif d’alerte mis en place dans les pharmacies”
Link: https://www.lemonde.fr/societe/article/2020/03/27/confinement-un-dispositif-d-alerte-dans-les-pharmacies-pour-les-femmes-violentees_6034583_3224.html The New York Times
“For Abused Women, a Pandemic Lockdown Holds Dangers of Its Own”
Definições Love Bombing, de acordo com a Wikipedia: "Comportamento de um narcisista abusivo que tenta conquistar a confiança de uma vítima".
Gaslighting, de acordo com a Wikipedia: "Gaslighting é uma forma de manipulação psicológica na qual uma pessoa ou grupo coloca sementes de dúvida em um indivíduo-alvo, fazendo-os questionar sua própria memória, percepção ou julgamento, frequentemente evocando neles dissonância cognitiva e outras mudanças, como baixa auto-estima".
Tradução automática Google Translate:
Imagens
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Pixabay
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* Karina Gols é profissional de Comunicação Internacional com mais de 25 anos de experiência e é poliglota. Foi articulista da Tribuna da Imprensa, trabalhou em gigantes como a Rede Globo, Edelman, Petrobras, Google (YouTube) e CNA - Confederação Nacional de Agricultura (assessoria de imprensa internacional pela The Information Company, nos EUA). Reside na Califórnia, Estados Unidos. e redige posts para o blog da organização sem fins lucrativos Pacific Southwest Community Development Corporation. Gosta de ver o lado positivo das coisas, mantendo o bom humor e é sobrevivente de violência doméstica.
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